sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Parte da beleza
Na
altura, e como não soa bem dizer isto, julgava que fragilidade é
que era sensual, se não fosse uma incomodidade com as coisas, com o
mundo. Se não trouxesse atrelada a vontade de mudar alguma coisa. Se
apenas significasse um dedo em constantes caracóis no cabelo. Ela
dançava devagar, sem companhia, no meio da pista. A Salita
de Juegos, por
causa dela,
não era um bar corriqueiro. Nunca me atrevi a fazer conversa, no
último momento desistia chegando à conclusão que me daria mil
voltas. Até que a deixei de encontrar. Não sei definir com precisão
a importância que teve – uma pessoa com quem nunca falei - mas ao
dizer a verdade
apenas estou a enganar o mundo com uma sequência de verdades
palmatórias eventualmente bem apresentadas e racionais. Vontade de
que um fim-de-semana seja só um fim-de-semana. Com a simplicidade e
o acesso directo estaria a oferecer uma parte
da beleza,
que é o que unicamente representa a verdade. Todas
as sextas-feiras esperava em vão. Voltava a casa e lia um dos contos
de Raymond
Carver
até adormecer. E ela regressava e continuava a dançar devagar, sem
companhia, no tecto do meu quarto.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
domingo, 26 de janeiro de 2014
Terra fria
Acordei com o mergulho de alguém na piscina. A minha mulher dormia profundamente, a boca ligeiramente aberta. Quando acordo antes de hora proveitosa sei que é inútil tentar voltar a adormecer. Fui até à varanda e em baixo, numa espreguiçadeira, com algumas garrafas vazias à volta, estava um casal jovem. A rapariga olhava para a piscina e o rapaz enxugava-lhe as costas com uma toalha, cruzou os braços; encolheu-se, talvez o mergulho madrugador tivesse tido um bom efeito. O rapaz abraçou-a. Deviam ser sete da manhã.
Estava num empreendimento turístico no Sul. Um amigo e colega de trabalho acabava de se casar. Ao sair do quarto cruzei-me com o casal da piscina. Estavam em fatos de banho e deixaram pegadas na alcatifa das escadas. A alcatifa do hotel parecia existir para que os ingleses se sentissem em casa. Bastante cómodo quando se saía da piscina e se subia descalço para o quarto. A sala onde decorreu o banquete continuava como a havia deixado. Sentei-me na mesa onde horas tinha estado todo o dia a comer. Oito cadeiras à volta da mesa, uma estava caída. A toalha manchada com todo o tipo de cores, talvez faltasse o azul, o azul gélido quase transparente. O banquete tinha decorrido com animação e sem uma quantidade exagerada de momentos aborrecidos. O pior dos casamentos são os vídeos biográficos, a maioria centrados em abundantes poses para a fotografia. Ouvi ruídos atrás da porta de serviço, em breve os empregados começariam as tarefas de limpeza. Na mesa que nos destinaram ficaram outros três casais, o Rodrigo, o Josep e a Cristina, amigos que tenho em comum com o noivo, acompanhados pelos seus companheiros de relação (mais ou menos comprometidos). Conhecíamo-nos há algum tempo mas, devido à pouca estabilidade laboral, todos trabalhávamos já em empresas diferentes. Alguém recordou Javier. Chegámos à conclusão de que havíamos perdido o contacto com ele. Não tínhamos a certeza de onde se encontrava ou de qual a sua ocupação. Recordámos episódios. Um jantar de natal que acabou na cave de um bar em Recoletos. Recordámos mais episódios e a conversa adquiriu um certo tom de reserva com frases ditas entre silêncios.
Lembrei-me da última conversa telefónica que mantive com Javier e acabei a enumerar tantas coisas que lhe podia ter dito. Várias vezes estive prestes a abandonar algo que me era favorável. Seguir uma pequena liberdade interior que me parecia encher o peito e confiscar toda a representação aparente de vida, e isto só com a minha voz. Apoderava-se do meu ânimo uma estranha sensação de expectativa, ainda que o meu comportamento, cada vez mais titubeante, actuasse naquele mesmo rumo coerente com a semana, o mês, o ano passado. Ampliava certos bancos nebulosos e sopesava se a melhor saída não seria contar comigo mesmo, sozinho. Obscurecia de propósito uma frase, um momento, e pensava na possibilidade de uma ilha que me fizesse distante e impossível de atingir. Não é necessário muito para viver com dignidade. Tentava avaliar a minha dose real de pessimismo e nunca chegava a grandes conclusões. Procurava sobretudo não a alimentar. Afastar momentos de fantasia que me lançavam pontes para onde, convinha, me acabaria por encontrar isolado. Encarregar-me da minha vida tinha um significado de prudência, certa frieza de testa para em cada momento posicionar-me onde nunca me daria vergonha estar e poder dizê-lo sem fazer perigar o agradável retorno a casa.
Voltei aos segundos em que o rapaz enxugava as costas da rapariga. A rapariga aproximando a boca do ombro. O rapaz seduzido pelo movimento. Sabia o que era o amor, depois de tudo. Subi as escadas alcatifadas e notei como os degraus já estavam secos. Despi-me. Maldisse a minha falta de habilidade porque a minha mulher entretanto acordara com o barulho da fechadura. Perguntou-me as horas e respondi-lhe: muito cedo para o que quer que seja; deitei-me de novo, embalando-nos com o movimento cadenciado do meu corpo, provavelmente muito semelhante às repetições compulsivas de quem procura afastar uma ansiedade difusa, não consegui voltar a adormecer mas a minha mulher já não me respondeu quando lhe apertei a mão.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
Estava num empreendimento turístico no Sul. Um amigo e colega de trabalho acabava de se casar. Ao sair do quarto cruzei-me com o casal da piscina. Estavam em fatos de banho e deixaram pegadas na alcatifa das escadas. A alcatifa do hotel parecia existir para que os ingleses se sentissem em casa. Bastante cómodo quando se saía da piscina e se subia descalço para o quarto. A sala onde decorreu o banquete continuava como a havia deixado. Sentei-me na mesa onde horas tinha estado todo o dia a comer. Oito cadeiras à volta da mesa, uma estava caída. A toalha manchada com todo o tipo de cores, talvez faltasse o azul, o azul gélido quase transparente. O banquete tinha decorrido com animação e sem uma quantidade exagerada de momentos aborrecidos. O pior dos casamentos são os vídeos biográficos, a maioria centrados em abundantes poses para a fotografia. Ouvi ruídos atrás da porta de serviço, em breve os empregados começariam as tarefas de limpeza. Na mesa que nos destinaram ficaram outros três casais, o Rodrigo, o Josep e a Cristina, amigos que tenho em comum com o noivo, acompanhados pelos seus companheiros de relação (mais ou menos comprometidos). Conhecíamo-nos há algum tempo mas, devido à pouca estabilidade laboral, todos trabalhávamos já em empresas diferentes. Alguém recordou Javier. Chegámos à conclusão de que havíamos perdido o contacto com ele. Não tínhamos a certeza de onde se encontrava ou de qual a sua ocupação. Recordámos episódios. Um jantar de natal que acabou na cave de um bar em Recoletos. Recordámos mais episódios e a conversa adquiriu um certo tom de reserva com frases ditas entre silêncios.
Lembrei-me da última conversa telefónica que mantive com Javier e acabei a enumerar tantas coisas que lhe podia ter dito. Várias vezes estive prestes a abandonar algo que me era favorável. Seguir uma pequena liberdade interior que me parecia encher o peito e confiscar toda a representação aparente de vida, e isto só com a minha voz. Apoderava-se do meu ânimo uma estranha sensação de expectativa, ainda que o meu comportamento, cada vez mais titubeante, actuasse naquele mesmo rumo coerente com a semana, o mês, o ano passado. Ampliava certos bancos nebulosos e sopesava se a melhor saída não seria contar comigo mesmo, sozinho. Obscurecia de propósito uma frase, um momento, e pensava na possibilidade de uma ilha que me fizesse distante e impossível de atingir. Não é necessário muito para viver com dignidade. Tentava avaliar a minha dose real de pessimismo e nunca chegava a grandes conclusões. Procurava sobretudo não a alimentar. Afastar momentos de fantasia que me lançavam pontes para onde, convinha, me acabaria por encontrar isolado. Encarregar-me da minha vida tinha um significado de prudência, certa frieza de testa para em cada momento posicionar-me onde nunca me daria vergonha estar e poder dizê-lo sem fazer perigar o agradável retorno a casa.
Voltei aos segundos em que o rapaz enxugava as costas da rapariga. A rapariga aproximando a boca do ombro. O rapaz seduzido pelo movimento. Sabia o que era o amor, depois de tudo. Subi as escadas alcatifadas e notei como os degraus já estavam secos. Despi-me. Maldisse a minha falta de habilidade porque a minha mulher entretanto acordara com o barulho da fechadura. Perguntou-me as horas e respondi-lhe: muito cedo para o que quer que seja; deitei-me de novo, embalando-nos com o movimento cadenciado do meu corpo, provavelmente muito semelhante às repetições compulsivas de quem procura afastar uma ansiedade difusa, não consegui voltar a adormecer mas a minha mulher já não me respondeu quando lhe apertei a mão.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
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