Quis que o encontro se realizasse ao balcão de um bar.
Concorria a um posto de trabalho numa multinacional de venda de
programas informáticos e já estava ultrapassado o processo inicial
de selecção mas o ambiente em que decorreram as perguntas foi tão
enfadonho (sobretudo pelos meus esforços bem sucedidos) que qualquer
frente a frente me pareceria outra entrevista. As cadeiras são
objectos incómodos que deformam o corpo. Associo as cadeiras a
momentos de obrigação. Alturas em que debito todas as patranhas que
atestam um bom funcionamento mental, a saber, que concorre numa mesma
direcção e sem incongruências. Os responsáveis de recursos
humanos dedicados ao recrutamento e selecção, normalmente miudas
emocionalmente infantis, foram treinados para fazer sempre a meia
dúzia de perguntas por isso as respostas não podem escapar à mesma
normalização. Trata-se unicamente de boa memória. Normalmente sou
escolhido à primeira e nunca tive oportunidade de elaborar as
respostas que esquematizei a partir de um manual de psicologia
organizacional; mesmo assim o pior é apresentar-se numa entrevista
de trabalho sem ter a menor ideia do que dizer. Os entrevistadores
acabam por frustrar-se com respostas vagas e como consequência, e
para recuperar o domínio, a entrevista vai tornar-se mais dura. Por
isso o ideal é seguir o caminho das respostas formatadas. A maneira
mais simples de dominar é estar perante algo conhecido, já visto
antes. É mentira que o desconhecido atraia. Seduz meia dúzia de
sonhadores e três ou quatro astronautas, para além disso, é a
previsão acertada que conforta. O passo apoiado.
Encontrámo-nos
num bar perto de Alonso Martinez, um local que eu sabia estar sempre
à pinha e onde a hipótese remota de ter um sítio para apoiar os
copos era realmente o balcão. Digamos que não estava precisamente a
viver a melhor época da minha vida. O vento não corria de feição
embora eu também não me esforçasse por contrariar a corrente
adversa. Conheci Izadi (era basca) uma terça-feira num bar perto de
casa onde não havia quase ninguém. Em Alonso Martinez, foi o nosso
segundo encontro. Quando o objectivo é engatar, esteja onde se
esteja e seja com quem for, sigo o comportamento oposto ao das
entrevistas de trabalho. Tentar de alguma maneira mostrar brilho
próprio. Não ser só um satélite perdido por aí que um dia já
não serve para nada e acaba por afundar-se no Pacífico ou aterrar
no Sahara, longe, sem fazer estragos, como um gajo sem outras
qualidades que não sejam as da intermediação. Só quando a
coisa está relativamente controlada podes começar a comportar-te
como uma pessoa normal. Ajudou-me muito o facto de Izadi não ter
sentido de humor absolutamente nenhum, ou seja, carácter mais
feminino era impossível. Isto não significava que ela não se ria
das minhas tiradas, claro que sim, mas isso não provava que tivesse
sentido de humor, queria dizer apenas que estava dotada de uma
inteligência, como toda a gente, dentro da média. O sentido de
humor é uma característica essencialmente masculina. Não é sem
razão que muitas mulheres dizem que preferem um homem com sentido de
humor que as faça rir. Uma mulher com tiradas bem metidas de
cinco em cinco nunca me pareceu muito feminina.
O bar onde fomos estava decorado com umas cabeças de touro. Isto
ainda existe. São gerações em plena decadência é certo, classes
altas que exibem estatuto com peles ou cabeças de animais. Classes
altas extremamente conservadoras, peles de raposa propriedade de
veteranas ladys em Inglaterra, touros em Espanha, javalis em
Portugal, ou as peles de urso da Sarah Palin no Alasca. A basca não
achou muita piada ao sítio, na verdade creio até que se
escandalizou um pouco. Não fazia aquela ideia de mim. Não sou do
tipo que se identifica com três ou quatro estilos e aí se fecha e
daí não sai, não sou do tipo de fazer questão. Tenho
curiosidade por um conjunto alargado de manifestações,
evidentemente tenho as minhas preferências, mas existe um sentido
estético que não se esgota no belo. Não me queria sentar e
aquele foi o primeiro lugar que me ocorreu para ficar de pé. É
certo que o facto de não me querer sentar impediu que a noite
tivesse outro desfecho. No nosso primeiro encontro a coisa correu
lindamente, demonstrei toda a minha versatilidade. Depois da actuação
de palhaço dirigi a conversa a temas mais sérios e actuais. A
maioria das pessoas não tem ideias organizadas sobre assuntos
fulcrais para a sua vida, liberdade, educação, cultura ou emprego,
simplesmente não os consideram realmente fulcrais, não são
imediatos e ainda que tenham alguma opinião esta é sempre demasiado
polarizada e acabam por não ser capazes de apresentar uma visão com
princípio, meio e fim. A lepra de hoje em dia é nao ter emprego.
Quem tem trabalho acomoda-se e não estrebucha muito, quem não o tem
esquece-se rapidamente das reivindicações depois
de um tempo de salário regular. Os intelectuais que mais
considero baseiam-se num conhecimento ou aproximações históricas.
Não se limitam a fazer leituras sistemáticas do presente. Depois de
deixar clara a minha capacidade analítica (da maneira mais difusa,
não foi necessário um grande esforço) todos os meus modos foram
pensados para deixá-la entusiasmada. Quando tudo estava bem
encaminhado lembrei-me que num ataque de pessimismo agudo tinha
batido três punhetas na noite anterior e que estava débil de
forças. Transformei uma dificuldade numa oportunidade (o mesmo que
pregava nas entrevistas de trabalho) e nessa primeira noite provei
que não era um índio: voltámos castamente cada um a sua casa.
Notei
que as coisas começavam a mudar, que eu já não apresentava a mesma
dedicação, que as coisas se começavam a torcer, quando nos últimos
tempos com a minha ex-mulher já não segurava a porta à sua
passagem. Aguentar a porta. Esse cavalheiro. De alguma maneira é um
pouco triste quando a previsibilidade funciona. Uma noite de paixão
olímpica, umas flores a modo de surpresa, um elogio público. Não
estava para nenhuma relação, qualquer que ela fosse. Não me queria
sentar a perorar sobre o movimento das coisas, pessoal ou colectivo,
não queria partilhar. Aborrecia-me
apresentar-me. Eram quase cinco da manhã e continuava a ler
Michel Houellebecq. A leitura revelou o revés com a basca em toda a
sua importância, isto é, nenhuma. Houellebecq tinha de alguma
maneira o mesmo efeito da pornografia, o mesmo dom de decompor cada
uma das emoções em pedras da calçada. Despojava-te de sentimentos.
Na melhor das hipóteses fazia de ti um niilista. Houellebecq
encontrou a saída ideal para conviver com a depressão (aceitando-a
como companheira). O que o tranquiliza, de alguma maneira, é que não
é só ele que vai por água abaixo: vai ele e vai toda a sociedade
europeia actual. Estando o nível de desenvolvimento técnico e
científico a uma escala sem paralelo, sendo a velocidade de
transmissão da informação um dado adquirido, paradoxalmente, o ser
humano não tem capacidade para acompanhar todo o conjunto de
estímulos e o critério é o que deixa de existir, não chega a ser
o caos, é só uma grande confusão. O dia em que perdi as
estribeiras (essa madrugada) li um livro inteiro de Michel
Houellebecq e no final de cada capítulo sentia-me cada vez mais
longe, convictamente muito afastado, da manhã que se aproximava.