quinta-feira, 6 de março de 2014

Como perdi as estribeiras

Quis que o encontro se realizasse ao balcão de um bar. Concorria a um posto de trabalho numa multinacional de venda de programas informáticos e já estava ultrapassado o processo inicial de selecção mas o ambiente em que decorreram as perguntas foi tão enfadonho (sobretudo pelos meus esforços bem sucedidos) que qualquer frente a frente me pareceria outra entrevista. As cadeiras são objectos incómodos que deformam o corpo. Associo as cadeiras a momentos de obrigação. Alturas em que debito todas as patranhas que atestam um bom funcionamento mental, a saber, que concorre numa mesma direcção e sem incongruências. Os responsáveis de recursos humanos dedicados ao recrutamento e selecção, normalmente miudas emocionalmente infantis, foram treinados para fazer sempre a meia dúzia de perguntas por isso as respostas não podem escapar à mesma normalização. Trata-se unicamente de boa memória. Normalmente sou escolhido à primeira e nunca tive oportunidade de elaborar as respostas que esquematizei a partir de um manual de psicologia organizacional; mesmo assim o pior é apresentar-se numa entrevista de trabalho sem ter a menor ideia do que dizer. Os entrevistadores acabam por frustrar-se com respostas vagas e como consequência, e para recuperar o domínio, a entrevista vai tornar-se mais dura. Por isso o ideal é seguir o caminho das respostas formatadas. A maneira mais simples de dominar é estar perante algo conhecido, já visto antes. É mentira que o desconhecido atraia. Seduz meia dúzia de sonhadores e três ou quatro astronautas, para além disso, é a previsão acertada que conforta. O passo apoiado.

Encontrámo-nos num bar perto de Alonso Martinez, um local que eu sabia estar sempre à pinha e onde a hipótese remota de ter um sítio para apoiar os copos era realmente o balcão. Digamos que não estava precisamente a viver a melhor época da minha vida. O vento não corria de feição embora eu também não me esforçasse por contrariar a corrente adversa. Conheci Izadi (era basca) uma terça-feira num bar perto de casa onde não havia quase ninguém. Em Alonso Martinez, foi o nosso segundo encontro. Quando o objectivo é engatar, esteja onde se esteja e seja com quem for, sigo o comportamento oposto ao das entrevistas de trabalho. Tentar de alguma maneira mostrar brilho próprio. Não ser só um satélite perdido por aí que um dia já não serve para nada e acaba por afundar-se no Pacífico ou aterrar no Sahara, longe, sem fazer estragos, como um gajo sem outras qualidades que não sejam as da intermediação. Só quando a coisa está relativamente controlada podes começar a comportar-te como uma pessoa normal. Ajudou-me muito o facto de Izadi não ter sentido de humor absolutamente nenhum, ou seja, carácter mais feminino era impossível. Isto não significava que ela não se ria das minhas tiradas, claro que sim, mas isso não provava que tivesse sentido de humor, queria dizer apenas que estava dotada de uma inteligência, como toda a gente, dentro da média. O sentido de humor é uma característica essencialmente masculina. Não é sem razão que muitas mulheres dizem que preferem um homem com sentido de humor que as faça rir. Uma mulher com tiradas bem metidas de cinco em cinco nunca me pareceu muito feminina.

O bar onde fomos estava decorado com umas cabeças de touro. Isto ainda existe. São gerações em plena decadência é certo, classes altas que exibem estatuto com peles ou cabeças de animais. Classes altas extremamente conservadoras, peles de raposa propriedade de veteranas ladys em Inglaterra, touros em Espanha, javalis em Portugal, ou as peles de urso da Sarah Palin no Alasca. A basca não achou muita piada ao sítio, na verdade creio até que se escandalizou um pouco. Não fazia aquela ideia de mim. Não sou do tipo que se identifica com três ou quatro estilos e aí se fecha e daí não sai, não sou do tipo de fazer questão. Tenho curiosidade por um conjunto alargado de manifestações, evidentemente tenho as minhas preferências, mas existe um sentido estético que não se esgota no belo. Não me queria sentar e aquele foi o primeiro lugar que me ocorreu para ficar de pé. É certo que o facto de não me querer sentar impediu que a noite tivesse outro desfecho. No nosso primeiro encontro a coisa correu lindamente, demonstrei toda a minha versatilidade. Depois da actuação de palhaço dirigi a conversa a temas mais sérios e actuais. A maioria das pessoas não tem ideias organizadas sobre assuntos fulcrais para a sua vida, liberdade, educação, cultura ou emprego, simplesmente não os consideram realmente fulcrais, não são imediatos e ainda que tenham alguma opinião esta é sempre demasiado polarizada e acabam por não ser capazes de apresentar uma visão com princípio, meio e fim. A lepra de hoje em dia é nao ter emprego. Quem tem trabalho acomoda-se e não estrebucha muito, quem não o tem esquece-se rapidamente das reivindicações depois de um tempo de salário regular. Os intelectuais que mais considero baseiam-se num conhecimento ou aproximações históricas. Não se limitam a fazer leituras sistemáticas do presente. Depois de deixar clara a minha capacidade analítica (da maneira mais difusa, não foi necessário um grande esforço) todos os meus modos foram pensados para deixá-la entusiasmada. Quando tudo estava bem encaminhado lembrei-me que num ataque de pessimismo agudo tinha batido três punhetas na noite anterior e que estava débil de forças. Transformei uma dificuldade numa oportunidade (o mesmo que pregava nas entrevistas de trabalho) e nessa primeira noite provei que não era um índio: voltámos castamente cada um a sua casa.

Notei que as coisas começavam a mudar, que eu já não apresentava a mesma dedicação, que as coisas se começavam a torcer, quando nos últimos tempos com a minha ex-mulher já não segurava a porta à sua passagem. Aguentar a porta. Esse cavalheiro. De alguma maneira é um pouco triste quando a previsibilidade funciona. Uma noite de paixão olímpica, umas flores a modo de surpresa, um elogio público. Não estava para nenhuma relação, qualquer que ela fosse. Não me queria sentar a perorar sobre o movimento das coisas, pessoal ou colectivo, não queria partilhar. Aborrecia-me apresentar-me. Eram quase cinco da manhã e continuava a ler Michel Houellebecq. A leitura revelou o revés com a basca em toda a sua importância, isto é, nenhuma. Houellebecq tinha de alguma maneira o mesmo efeito da pornografia, o mesmo dom de decompor cada uma das emoções em pedras da calçada. Despojava-te de sentimentos. Na melhor das hipóteses fazia de ti um niilista. Houellebecq encontrou a saída ideal para conviver com a depressão (aceitando-a como companheira). O que o tranquiliza, de alguma maneira, é que não é só ele que vai por água abaixo: vai ele e vai toda a sociedade europeia actual. Estando o nível de desenvolvimento técnico e científico a uma escala sem paralelo, sendo a velocidade de transmissão da informação um dado adquirido, paradoxalmente, o ser humano não tem capacidade para acompanhar todo o conjunto de estímulos e o critério é o que deixa de existir, não chega a ser o caos, é só uma grande confusão. O dia em que perdi as estribeiras (essa madrugada) li um livro inteiro de Michel Houellebecq e no final de cada capítulo sentia-me cada vez mais longe, convictamente muito afastado, da manhã que se aproximava.

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