Quando era guarda-nocturno fui escalado para fazer vigilância num circo. Acautelar o material de luz, som e imagem que ficava montado para o espectáculo do dia seguinte. Cheguei e os técnicos partiram. Dei uma volta completa por trás das bancadas. Testei a lona em vários pontos. Era fácil alcançar o interior da tenda. Fi-lo mais por rotina do que por preocupação com os holofotes, câmaras, microfones e demais meios necessários para a transmissão televisiva. Estava muito frio, dias antes do Natal, trazia na mochila meia dúzia de cervejas de lata para melhor aguentar as horas nocturnas que tinha por diante. Baixei a intensidade dos reflectores. Coloquei uma cadeira no centro da arena e sentei-me ao contrário. Apoiei os braços nas costas da cadeira, voltado para as bancadas, e mantive-me naquela postura. Não estava de todo cómodo e por isso não corria o risco de adormecer. Bebia cerveja a sorvos breves. Ouviam-se os ruídos dos animais nas jaulas.
Passadas horas, não sei quantas, ouvi passos atrás de mim. Passos que cessaram ao fim de poucos segundos. Uma voz grave começou a escutar-se, uma voz chegada do fim ou do início dos tempos, o que cada um achar mais longínquo.
Tudo o que fazes é um balão. Que se enche e despeja sem parar. Não sou diferente e a minha visão baseia-se na relação que mantenho com o meu domador. Tolero-o. Não é demasiado disciplinador e eu não sou muito teimoso. Dedico-me ao que forçosamente estou destinado. Às vezes penso que bastava abrir a boca e mastigar-lhe um pouco a cabeça. Talvez o fizesse no meio de uma actuação. Mas não tenho vocação de protagonista. E não quero correr o risco de ser abatido. Cada espécie, por mais domesticada que esteja, ou civilizada que tenha sido, nunca perde os instintos que lhe cabem, os instintos com que nasce. Nunca corri atrás de gazelas. Mas a filogenia repete-se. E fora deste ambiente não descobriria muito mais do que encontrei até aqui. A filogenia repete-se. Este circo é um microcosmo. Sou mais um elemento da companhia e, devido à minha natureza, integro-me sem esforço. A minha visão é muito pragmática. Passo todo o tempo perto da civilização, de terra em terra, e durante a noite posso ler algum livro. Essa é uma das vantagens. O último, da autoria de Bernard Quiriny, intitula-se Contos Carnívoros. Escolhi-o porque gostei do título. O prefácio foi escrito por Enrique Vila-Matas que em vez de ter feito uma introdução cheia de elogios ao novel escritor se posiciona ao lado de Quiriny e escreve outro conto que versa sobre a tentativa gorada de descrever a História Geral do Vazio. Ou seja, um escritor como Vila-Matas situa-se no mesmo plano que um recém-chegado, ainda que de qualidades imediatamente reconhecíveis. Quanto ao tema desse prólogo, não é imprescindível escrever uma História Geral do Vazio, seria talvez um catálogo de banalidades. Escrevemo-la nós todos os dias e nunca nos aborrecemos. É aliás com um prazer desinteressado que o fazemos. Para mim é importante rodear-me de alguma humanidade. Cada um vive conforme a sua condição. Não me parece que exista uma pauta a seguir. Tanto melhor se as coisas correm bem. Três vezes por dia um tratador lança-me nacos de carne. Às vezes estou a dormir e só dou conta mais tarde, quando a carne já está carregada de moscas. Leio durante grande parte da noite. Não perguntes como arranjo os livros ou onde aprendi a ler. Pergunta-te que conclusões ficam das leituras que faço. A maioria das vezes é puro entretenimento, para descansar das crianças aos gritos ou do êxtase do público quando atravesso o arco em chamas. Outras vezes ensaio alguma rebeldia. Sei que estou preso. São momentos em que o meu rugido é mais selvagem. Mas tudo o que fazes é um balão. Que se enche e esvazia continuamente. Não me sinto privado de liberdade. Nasci no circo. Isto pode soar-te ridículo.
Não adormeças. Nessa posição podes cair e bater com a cabeça. Ficar amnésico. Esqueceres quem és. Parar de rever-te na vida actual ou deixar de ser guarda-nocturno. Não sei se para ti seria um desastre perderes a memória. Gosto de organizar pequenos inventários de ausências. No entanto, mesmo depois de notar essas faltas, não penso agir em conformidade com outra decisão que não seja continuar aqui. Não dou excessiva importância ao palco que piso. Fazer parte do espectáculo torna-me, afinal, invisível. Logo que saio do túnel e dou uma volta pela arena o público julga que assiste a alguma mostra de raça e surpreende-se com o meu porte, que encontra nobre, mas na realidade estou apenas a esticar as pernas; tolhidas por passar o dia recostado contra o tapume da jaula.
A voz calou-se e não olhei para trás. Esperei para ver o que acontecia. Não aconteceu nada e levantei-me com dores nas articulações. Na entrada, a lona, às riscas vermelhas e brancas, abria-se num triângulo. A manhã despontava e a luz provocou-me tonturas. Baixei os olhos e vi um monte de latas de cerveja por cima da serradura. Levava várias horas a beber. Enquanto olhava para as bancadas, que mais tarde seriam ocupadas por pessoas com expectativas de diversão, urinei para cima das latas, a serradura empapava o líquido, e nesse momento também não percebi qual a necessidade de traçar uma teoria geral do vazio.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Contra o enfático
Dormi
todo o dia e acordei às oito da noite. Cozinhei dois bifes de
vaca com molho de cerveja. Comi uma tangerina no terraço. Tinha
vontade de mandar as cascas por cima do muro que delimitava o
terraço seguinte. Mas o acto de enviar cada uma das cascas por cima
do muro só podia ser visto como má vizinhança, pouca educação,
sempre alguma espécie de grosseria. Nunca ninguém pensaria no que
na realidade significava: um gesto
contra o enfático.
Fumei
um cigarro à porta do terraço, que dava para cozinha, e
perguntei-me pelos corvos desaparecidos. Habitualmente grasnavam
desde os ramos do pinheiro. De novo, pensei em mandar a beata apagada
para o terraço dos vizinhos (que não eram mesmo nada simpáticos).
Fiz aquela pergunta elementar: se gostava que me fizessem o mesmo,
concluí que se alguém o fizesse, se encontrasse cascas de tangerina
ou pontas de cigarro no meu terraço, seria por falta de urbanidade;
não existe muita gente com capacidade para discursos mínimos,
epígrafes contra
o enfático e o solene. Acabei por considerar que a linha que
separa a falta de educação do discurso mínimo mais desistente é
realmente insignificante. Pensei nas feministas que mostram as tetas
por dá cá aquela palha.
Mas
depois já nada disso teve importância. O que me ocupou foi tomar
duche, escolher a roupa, vestir-me, perfumar-me, recolher as chaves
do carro, o isqueiro, a carteira e o telemóvel. Saí e fui directo a
um bar com uma carta onde anunciavam, pareceu-me mesmo, perto de mil
cocktails. Pedi dois Tom Collins e bebi logo um. Depois fiquei
sentado ao balcão a ler o El Cultural, revista que sai à
sexta-feira com o El Mundo, onde se publicavam dois artigos sobre
um livro do Roberto Bolaño. Uma noite ela leu em voz alta
um conto incluído no Llamadas telefónicas ou no Putas
asesinas, não me lembro ao certo, e finalmente decidiu que não
gostava da escrita, um mero encadear leviano de frases
que esbarrava na superfície das coisas. Vidas utilitárias
ainda que de certa forma corajosas. Um desfilar de situações
protagonizadas por personagens sem medo, é certo, mas também sem
rumo certo (e outra vez o discurso contra o enfático, que questiona
a certeza). Uma imaginação colossal e um movimento
constante. Figuras que coincidem num mesmo ponto e logo divergem sem
encontrarem ocasião para chegar a uma conclusão. Ela preferia Guy
de Maupassant ou Katherine Mansfield. E não deixava de ter razão.
Mas eu retiro sempre alguma coisa de positivo de gente que joga tudo
de uma vez. Sobretudo agora aqui onde estou, consciente do sem
sentido, não me posso dar ao luxo de ignorar um autor como Bolaño.
O livro chamava-se Los sinsabores del
verdadero policía. Um
dos críticos, depois de deixar claras as qualidades incomuns, a
ousadia e a liberdade dos escritos de Bolaño,
sublinhava
que não se tratava, como pretendia a edição, de um romance ou de
um romance inacabado. Tratava-se de um conjunto de materiais em
distinto estado de evolução recolhidos simplesmente para que nada
de Bolaño ficasse por publicar. O crítico não gostava de armários
perfeitos com as gavetas etiquetadas. Bolaño escrevia muitas vezes a
partir do meio e interrompia-se quando entrevia uma ideia em
movimento num caminho paralelo. Como os miúdos que se
empoleiravam nos eléctricos em marcha para não pagar bilhete ou
para se divertirem sem mais. É preciso muita destreza, anular a
diferença de velocidades com risco de queda. Aproveitar a boleia,
acidental. Manter a vida fragmentada no plano do objecto acabado.
Quando
abandonei aquele que tinha sido o
nosso lar
durante cinco anos obriguei-me a descer as escadas a correr. Saltei
alguns degraus de dois em dois. O impacto da porta a fechar-se atrás
de mim pareceu prevenir-me de que a partir daquele momento já não
era bem-vindo. As ruas estavam cobertas por um manto de folhas. Não
havia vento e as folhas compunham uma camada uniforme. Já tinha as
malas todas no carro e acelerei. Pensei que a única coisa que
poderia afastar o eco das últimas palavras seria aquele tipo de
trabalho físico, continuado e repetitivo, que lentamente vai
absorvendo as forças e sugando a energia, chegando-se ao final do
dia sem conseguir dar atenção a mais nada que não seja
proporcionar descanso ao corpo. Desejei estar incumbido da limpeza de
três ou quatro quarteirões. Varrer os passeios, limpar os canteiros
das flores, juntar vários montes de folhas, distribuí-los a cada 30
metros e depois recolhê-los para uma carrinha de caixa aberta.
Materializar a inutilidade quando o motorista arrancasse de repente e
as folhas voassem. Esse era o meu estado de ânimo. Uma sensação de
inutilidade completa. Podia esforçar-me que no final o resultado era
o mesmo: como se não tivesse agido, como se estivesse parado todo o
tempo.
As
declarações eloquentes, que procuram ter um efeito, influência no
leitor ou no ouvinte, nunca me deixo prender por elas. Não leio
jornais. O tempo passou e as histórias de amor acabaram. Deixei de
ter essa tábua de salvação. Não foi uma decisão consciente mas
todo o meu comportamento ulterior derivava dessa recusa. Faz todo o
sentido, se páras para pensar em determinadas experiências que te
afectaram e não podes ultrapasar.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Nova Scotia Robots
Estou dez
horas na fábrica. Os turnos foram extintos e o horário laboral
passou a ser fixo. Para não perdermos o emprego, os sindicatos
assinaram a proposta da direcção que incluía uma revisão das
jornadas de trabalho. Uma situação que se pretende temporária.
Chego antes, regresso sempre depois da hora. As dez horas não são
passadas a trabalhar, provavelmente nem um quarto do tempo. Mas temos
que manter-nos disponíveis para o caso dos clientes enviarem
pedidos. Muitas vezes são os fornecedores que demoram as entregas de
material. É desmotivador quando fazemos tudo o que é esperado e são
os outros que falham.
Volto a casa destroçado. Não pelo trabalho realizado, que está reduzido ao mínimo, mas pelo facto das horas serem passadas em contínua espera, na cantina, à porta do edifício principal, nos corredores, nas oficinas, e não usamos máscara porque o pó está assente e não anda no ar. Mas respiramos o mesmo ar viciado. Em conversas de circunstância. Sempre sem novidade. Um tempo contrafeito.
Chego a casa vazio. A postura em que me deixo cair na cadeira é a postura em que fico até ao dia seguinte, como um molde de barro que alguém abandonou porque já não encontrou serventia, a manipulação condenada desde o princípio, fico sentado e durante horas nem considero levantar-me para fechar a janela. Fico ali sentado, encolhido, a gelar e a imaginar um dia sem tempos de espera. Um dia que não seja reactivo. Acordo noite dentro e aguardo que o sol nasça. Desejo que seja finalmente esse o dia do regresso à antiga rotina. Um dia inteiro na linha de montagem, com as pausas para limpar o suor, um dia sem incertezas, novamente uma máquina oleada que junta peças vezes sem conta; não perde a concentração e volta aos objectivos bem traçados.
Volto a casa destroçado. Não pelo trabalho realizado, que está reduzido ao mínimo, mas pelo facto das horas serem passadas em contínua espera, na cantina, à porta do edifício principal, nos corredores, nas oficinas, e não usamos máscara porque o pó está assente e não anda no ar. Mas respiramos o mesmo ar viciado. Em conversas de circunstância. Sempre sem novidade. Um tempo contrafeito.
Chego a casa vazio. A postura em que me deixo cair na cadeira é a postura em que fico até ao dia seguinte, como um molde de barro que alguém abandonou porque já não encontrou serventia, a manipulação condenada desde o princípio, fico sentado e durante horas nem considero levantar-me para fechar a janela. Fico ali sentado, encolhido, a gelar e a imaginar um dia sem tempos de espera. Um dia que não seja reactivo. Acordo noite dentro e aguardo que o sol nasça. Desejo que seja finalmente esse o dia do regresso à antiga rotina. Um dia inteiro na linha de montagem, com as pausas para limpar o suor, um dia sem incertezas, novamente uma máquina oleada que junta peças vezes sem conta; não perde a concentração e volta aos objectivos bem traçados.
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