Fumei
um cigarro à porta do terraço, que dava para cozinha, e
perguntei-me pelos corvos desaparecidos. Habitualmente grasnavam
desde os ramos do pinheiro. De novo, pensei em mandar a beata apagada
para o terraço dos vizinhos (que não eram mesmo nada simpáticos).
Fiz aquela pergunta elementar: se gostava que me fizessem o mesmo,
concluí que se alguém o fizesse, se encontrasse cascas de tangerina
ou pontas de cigarro no meu terraço, seria por falta de urbanidade;
não existe muita gente com capacidade para discursos mínimos,
epígrafes contra
o enfático e o solene. Acabei por considerar que a linha que
separa a falta de educação do discurso mínimo mais desistente é
realmente insignificante. Pensei nas feministas que mostram as tetas
por dá cá aquela palha.
Mas
depois já nada disso teve importância. O que me ocupou foi tomar
duche, escolher a roupa, vestir-me, perfumar-me, recolher as chaves
do carro, o isqueiro, a carteira e o telemóvel. Saí e fui directo a
um bar com uma carta onde anunciavam, pareceu-me mesmo, perto de mil
cocktails. Pedi dois Tom Collins e bebi logo um. Depois fiquei
sentado ao balcão a ler o El Cultural, revista que sai à
sexta-feira com o El Mundo, onde se publicavam dois artigos sobre
um livro do Roberto Bolaño. Uma noite ela leu em voz alta
um conto incluído no Llamadas telefónicas ou no Putas
asesinas, não me lembro ao certo, e finalmente decidiu que não
gostava da escrita, um mero encadear leviano de frases
que esbarrava na superfície das coisas. Vidas utilitárias
ainda que de certa forma corajosas. Um desfilar de situações
protagonizadas por personagens sem medo, é certo, mas também sem
rumo certo (e outra vez o discurso contra o enfático, que questiona
a certeza). Uma imaginação colossal e um movimento
constante. Figuras que coincidem num mesmo ponto e logo divergem sem
encontrarem ocasião para chegar a uma conclusão. Ela preferia Guy
de Maupassant ou Katherine Mansfield. E não deixava de ter razão.
Mas eu retiro sempre alguma coisa de positivo de gente que joga tudo
de uma vez. Sobretudo agora aqui onde estou, consciente do sem
sentido, não me posso dar ao luxo de ignorar um autor como Bolaño.
O livro chamava-se Los sinsabores del
verdadero policía. Um
dos críticos, depois de deixar claras as qualidades incomuns, a
ousadia e a liberdade dos escritos de Bolaño,
sublinhava
que não se tratava, como pretendia a edição, de um romance ou de
um romance inacabado. Tratava-se de um conjunto de materiais em
distinto estado de evolução recolhidos simplesmente para que nada
de Bolaño ficasse por publicar. O crítico não gostava de armários
perfeitos com as gavetas etiquetadas. Bolaño escrevia muitas vezes a
partir do meio e interrompia-se quando entrevia uma ideia em
movimento num caminho paralelo. Como os miúdos que se
empoleiravam nos eléctricos em marcha para não pagar bilhete ou
para se divertirem sem mais. É preciso muita destreza, anular a
diferença de velocidades com risco de queda. Aproveitar a boleia,
acidental. Manter a vida fragmentada no plano do objecto acabado.
Quando
abandonei aquele que tinha sido o
nosso lar
durante cinco anos obriguei-me a descer as escadas a correr. Saltei
alguns degraus de dois em dois. O impacto da porta a fechar-se atrás
de mim pareceu prevenir-me de que a partir daquele momento já não
era bem-vindo. As ruas estavam cobertas por um manto de folhas. Não
havia vento e as folhas compunham uma camada uniforme. Já tinha as
malas todas no carro e acelerei. Pensei que a única coisa que
poderia afastar o eco das últimas palavras seria aquele tipo de
trabalho físico, continuado e repetitivo, que lentamente vai
absorvendo as forças e sugando a energia, chegando-se ao final do
dia sem conseguir dar atenção a mais nada que não seja
proporcionar descanso ao corpo. Desejei estar incumbido da limpeza de
três ou quatro quarteirões. Varrer os passeios, limpar os canteiros
das flores, juntar vários montes de folhas, distribuí-los a cada 30
metros e depois recolhê-los para uma carrinha de caixa aberta.
Materializar a inutilidade quando o motorista arrancasse de repente e
as folhas voassem. Esse era o meu estado de ânimo. Uma sensação de
inutilidade completa. Podia esforçar-me que no final o resultado era
o mesmo: como se não tivesse agido, como se estivesse parado todo o
tempo.
As
declarações eloquentes, que procuram ter um efeito, influência no
leitor ou no ouvinte, nunca me deixo prender por elas. Não leio
jornais. O tempo passou e as histórias de amor acabaram. Deixei de
ter essa tábua de salvação. Não foi uma decisão consciente mas
todo o meu comportamento ulterior derivava dessa recusa. Faz todo o
sentido, se páras para pensar em determinadas experiências que te
afectaram e não podes ultrapasar.
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