Quis que o encontro se realizasse ao balcão de um bar.
Concorria a um posto de trabalho numa multinacional de venda de
programas informáticos e já estava ultrapassado o processo inicial
de selecção mas o ambiente em que decorreram as perguntas foi tão
enfadonho (sobretudo pelos meus esforços bem sucedidos) que qualquer
frente a frente me pareceria outra entrevista. As cadeiras são
objectos incómodos que deformam o corpo. Associo as cadeiras a
momentos de obrigação. Alturas em que debito todas as patranhas que
atestam um bom funcionamento mental, a saber, que concorre numa mesma
direcção e sem incongruências. Os responsáveis de recursos
humanos dedicados ao recrutamento e selecção, normalmente miudas
emocionalmente infantis, foram treinados para fazer sempre a meia
dúzia de perguntas por isso as respostas não podem escapar à mesma
normalização. Trata-se unicamente de boa memória. Normalmente sou
escolhido à primeira e nunca tive oportunidade de elaborar as
respostas que esquematizei a partir de um manual de psicologia
organizacional; mesmo assim o pior é apresentar-se numa entrevista
de trabalho sem ter a menor ideia do que dizer. Os entrevistadores
acabam por frustrar-se com respostas vagas e como consequência, e
para recuperar o domínio, a entrevista vai tornar-se mais dura. Por
isso o ideal é seguir o caminho das respostas formatadas. A maneira
mais simples de dominar é estar perante algo conhecido, já visto
antes. É mentira que o desconhecido atraia. Seduz meia dúzia de
sonhadores e três ou quatro astronautas, para além disso, é a
previsão acertada que conforta. O passo apoiado.
Encontrámo-nos
num bar perto de Alonso Martinez, um local que eu sabia estar sempre
à pinha e onde a hipótese remota de ter um sítio para apoiar os
copos era realmente o balcão. Digamos que não estava precisamente a
viver a melhor época da minha vida. O vento não corria de feição
embora eu também não me esforçasse por contrariar a corrente
adversa. Conheci Izadi (era basca) uma terça-feira num bar perto de
casa onde não havia quase ninguém. Em Alonso Martinez, foi o nosso
segundo encontro. Quando o objectivo é engatar, esteja onde se
esteja e seja com quem for, sigo o comportamento oposto ao das
entrevistas de trabalho. Tentar de alguma maneira mostrar brilho
próprio. Não ser só um satélite perdido por aí que um dia já
não serve para nada e acaba por afundar-se no Pacífico ou aterrar
no Sahara, longe, sem fazer estragos, como um gajo sem outras
qualidades que não sejam as da intermediação. Só quando a
coisa está relativamente controlada podes começar a comportar-te
como uma pessoa normal. Ajudou-me muito o facto de Izadi não ter
sentido de humor absolutamente nenhum, ou seja, carácter mais
feminino era impossível. Isto não significava que ela não se ria
das minhas tiradas, claro que sim, mas isso não provava que tivesse
sentido de humor, queria dizer apenas que estava dotada de uma
inteligência, como toda a gente, dentro da média. O sentido de
humor é uma característica essencialmente masculina. Não é sem
razão que muitas mulheres dizem que preferem um homem com sentido de
humor que as faça rir. Uma mulher com tiradas bem metidas de
cinco em cinco nunca me pareceu muito feminina.
O bar onde fomos estava decorado com umas cabeças de touro. Isto
ainda existe. São gerações em plena decadência é certo, classes
altas que exibem estatuto com peles ou cabeças de animais. Classes
altas extremamente conservadoras, peles de raposa propriedade de
veteranas ladys em Inglaterra, touros em Espanha, javalis em
Portugal, ou as peles de urso da Sarah Palin no Alasca. A basca não
achou muita piada ao sítio, na verdade creio até que se
escandalizou um pouco. Não fazia aquela ideia de mim. Não sou do
tipo que se identifica com três ou quatro estilos e aí se fecha e
daí não sai, não sou do tipo de fazer questão. Tenho
curiosidade por um conjunto alargado de manifestações,
evidentemente tenho as minhas preferências, mas existe um sentido
estético que não se esgota no belo. Não me queria sentar e
aquele foi o primeiro lugar que me ocorreu para ficar de pé. É
certo que o facto de não me querer sentar impediu que a noite
tivesse outro desfecho. No nosso primeiro encontro a coisa correu
lindamente, demonstrei toda a minha versatilidade. Depois da actuação
de palhaço dirigi a conversa a temas mais sérios e actuais. A
maioria das pessoas não tem ideias organizadas sobre assuntos
fulcrais para a sua vida, liberdade, educação, cultura ou emprego,
simplesmente não os consideram realmente fulcrais, não são
imediatos e ainda que tenham alguma opinião esta é sempre demasiado
polarizada e acabam por não ser capazes de apresentar uma visão com
princípio, meio e fim. A lepra de hoje em dia é nao ter emprego.
Quem tem trabalho acomoda-se e não estrebucha muito, quem não o tem
esquece-se rapidamente das reivindicações depois
de um tempo de salário regular. Os intelectuais que mais
considero baseiam-se num conhecimento ou aproximações históricas.
Não se limitam a fazer leituras sistemáticas do presente. Depois de
deixar clara a minha capacidade analítica (da maneira mais difusa,
não foi necessário um grande esforço) todos os meus modos foram
pensados para deixá-la entusiasmada. Quando tudo estava bem
encaminhado lembrei-me que num ataque de pessimismo agudo tinha
batido três punhetas na noite anterior e que estava débil de
forças. Transformei uma dificuldade numa oportunidade (o mesmo que
pregava nas entrevistas de trabalho) e nessa primeira noite provei
que não era um índio: voltámos castamente cada um a sua casa.
Notei
que as coisas começavam a mudar, que eu já não apresentava a mesma
dedicação, que as coisas se começavam a torcer, quando nos últimos
tempos com a minha ex-mulher já não segurava a porta à sua
passagem. Aguentar a porta. Esse cavalheiro. De alguma maneira é um
pouco triste quando a previsibilidade funciona. Uma noite de paixão
olímpica, umas flores a modo de surpresa, um elogio público. Não
estava para nenhuma relação, qualquer que ela fosse. Não me queria
sentar a perorar sobre o movimento das coisas, pessoal ou colectivo,
não queria partilhar. Aborrecia-me
apresentar-me. Eram quase cinco da manhã e continuava a ler
Michel Houellebecq. A leitura revelou o revés com a basca em toda a
sua importância, isto é, nenhuma. Houellebecq tinha de alguma
maneira o mesmo efeito da pornografia, o mesmo dom de decompor cada
uma das emoções em pedras da calçada. Despojava-te de sentimentos.
Na melhor das hipóteses fazia de ti um niilista. Houellebecq
encontrou a saída ideal para conviver com a depressão (aceitando-a
como companheira). O que o tranquiliza, de alguma maneira, é que não
é só ele que vai por água abaixo: vai ele e vai toda a sociedade
europeia actual. Estando o nível de desenvolvimento técnico e
científico a uma escala sem paralelo, sendo a velocidade de
transmissão da informação um dado adquirido, paradoxalmente, o ser
humano não tem capacidade para acompanhar todo o conjunto de
estímulos e o critério é o que deixa de existir, não chega a ser
o caos, é só uma grande confusão. O dia em que perdi as
estribeiras (essa madrugada) li um livro inteiro de Michel
Houellebecq e no final de cada capítulo sentia-me cada vez mais
longe, convictamente muito afastado, da manhã que se aproximava.
quinta-feira, 6 de março de 2014
quarta-feira, 5 de março de 2014
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
Circo
Quando era guarda-nocturno fui escalado para fazer vigilância num circo. Acautelar o material de luz, som e imagem que ficava montado para o espectáculo do dia seguinte. Cheguei e os técnicos partiram. Dei uma volta completa por trás das bancadas. Testei a lona em vários pontos. Era fácil alcançar o interior da tenda. Fi-lo mais por rotina do que por preocupação com os holofotes, câmaras, microfones e demais meios necessários para a transmissão televisiva. Estava muito frio, dias antes do Natal, trazia na mochila meia dúzia de cervejas de lata para melhor aguentar as horas nocturnas que tinha por diante. Baixei a intensidade dos reflectores. Coloquei uma cadeira no centro da arena e sentei-me ao contrário. Apoiei os braços nas costas da cadeira, voltado para as bancadas, e mantive-me naquela postura. Não estava de todo cómodo e por isso não corria o risco de adormecer. Bebia cerveja a sorvos breves. Ouviam-se os ruídos dos animais nas jaulas.
Passadas horas, não sei quantas, ouvi passos atrás de mim. Passos que cessaram ao fim de poucos segundos. Uma voz grave começou a escutar-se, uma voz chegada do fim ou do início dos tempos, o que cada um achar mais longínquo.
Tudo o que fazes é um balão. Que se enche e despeja sem parar. Não sou diferente e a minha visão baseia-se na relação que mantenho com o meu domador. Tolero-o. Não é demasiado disciplinador e eu não sou muito teimoso. Dedico-me ao que forçosamente estou destinado. Às vezes penso que bastava abrir a boca e mastigar-lhe um pouco a cabeça. Talvez o fizesse no meio de uma actuação. Mas não tenho vocação de protagonista. E não quero correr o risco de ser abatido. Cada espécie, por mais domesticada que esteja, ou civilizada que tenha sido, nunca perde os instintos que lhe cabem, os instintos com que nasce. Nunca corri atrás de gazelas. Mas a filogenia repete-se. E fora deste ambiente não descobriria muito mais do que encontrei até aqui. A filogenia repete-se. Este circo é um microcosmo. Sou mais um elemento da companhia e, devido à minha natureza, integro-me sem esforço. A minha visão é muito pragmática. Passo todo o tempo perto da civilização, de terra em terra, e durante a noite posso ler algum livro. Essa é uma das vantagens. O último, da autoria de Bernard Quiriny, intitula-se Contos Carnívoros. Escolhi-o porque gostei do título. O prefácio foi escrito por Enrique Vila-Matas que em vez de ter feito uma introdução cheia de elogios ao novel escritor se posiciona ao lado de Quiriny e escreve outro conto que versa sobre a tentativa gorada de descrever a História Geral do Vazio. Ou seja, um escritor como Vila-Matas situa-se no mesmo plano que um recém-chegado, ainda que de qualidades imediatamente reconhecíveis. Quanto ao tema desse prólogo, não é imprescindível escrever uma História Geral do Vazio, seria talvez um catálogo de banalidades. Escrevemo-la nós todos os dias e nunca nos aborrecemos. É aliás com um prazer desinteressado que o fazemos. Para mim é importante rodear-me de alguma humanidade. Cada um vive conforme a sua condição. Não me parece que exista uma pauta a seguir. Tanto melhor se as coisas correm bem. Três vezes por dia um tratador lança-me nacos de carne. Às vezes estou a dormir e só dou conta mais tarde, quando a carne já está carregada de moscas. Leio durante grande parte da noite. Não perguntes como arranjo os livros ou onde aprendi a ler. Pergunta-te que conclusões ficam das leituras que faço. A maioria das vezes é puro entretenimento, para descansar das crianças aos gritos ou do êxtase do público quando atravesso o arco em chamas. Outras vezes ensaio alguma rebeldia. Sei que estou preso. São momentos em que o meu rugido é mais selvagem. Mas tudo o que fazes é um balão. Que se enche e esvazia continuamente. Não me sinto privado de liberdade. Nasci no circo. Isto pode soar-te ridículo.
Não adormeças. Nessa posição podes cair e bater com a cabeça. Ficar amnésico. Esqueceres quem és. Parar de rever-te na vida actual ou deixar de ser guarda-nocturno. Não sei se para ti seria um desastre perderes a memória. Gosto de organizar pequenos inventários de ausências. No entanto, mesmo depois de notar essas faltas, não penso agir em conformidade com outra decisão que não seja continuar aqui. Não dou excessiva importância ao palco que piso. Fazer parte do espectáculo torna-me, afinal, invisível. Logo que saio do túnel e dou uma volta pela arena o público julga que assiste a alguma mostra de raça e surpreende-se com o meu porte, que encontra nobre, mas na realidade estou apenas a esticar as pernas; tolhidas por passar o dia recostado contra o tapume da jaula.
A voz calou-se e não olhei para trás. Esperei para ver o que acontecia. Não aconteceu nada e levantei-me com dores nas articulações. Na entrada, a lona, às riscas vermelhas e brancas, abria-se num triângulo. A manhã despontava e a luz provocou-me tonturas. Baixei os olhos e vi um monte de latas de cerveja por cima da serradura. Levava várias horas a beber. Enquanto olhava para as bancadas, que mais tarde seriam ocupadas por pessoas com expectativas de diversão, urinei para cima das latas, a serradura empapava o líquido, e nesse momento também não percebi qual a necessidade de traçar uma teoria geral do vazio.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
Passadas horas, não sei quantas, ouvi passos atrás de mim. Passos que cessaram ao fim de poucos segundos. Uma voz grave começou a escutar-se, uma voz chegada do fim ou do início dos tempos, o que cada um achar mais longínquo.
Tudo o que fazes é um balão. Que se enche e despeja sem parar. Não sou diferente e a minha visão baseia-se na relação que mantenho com o meu domador. Tolero-o. Não é demasiado disciplinador e eu não sou muito teimoso. Dedico-me ao que forçosamente estou destinado. Às vezes penso que bastava abrir a boca e mastigar-lhe um pouco a cabeça. Talvez o fizesse no meio de uma actuação. Mas não tenho vocação de protagonista. E não quero correr o risco de ser abatido. Cada espécie, por mais domesticada que esteja, ou civilizada que tenha sido, nunca perde os instintos que lhe cabem, os instintos com que nasce. Nunca corri atrás de gazelas. Mas a filogenia repete-se. E fora deste ambiente não descobriria muito mais do que encontrei até aqui. A filogenia repete-se. Este circo é um microcosmo. Sou mais um elemento da companhia e, devido à minha natureza, integro-me sem esforço. A minha visão é muito pragmática. Passo todo o tempo perto da civilização, de terra em terra, e durante a noite posso ler algum livro. Essa é uma das vantagens. O último, da autoria de Bernard Quiriny, intitula-se Contos Carnívoros. Escolhi-o porque gostei do título. O prefácio foi escrito por Enrique Vila-Matas que em vez de ter feito uma introdução cheia de elogios ao novel escritor se posiciona ao lado de Quiriny e escreve outro conto que versa sobre a tentativa gorada de descrever a História Geral do Vazio. Ou seja, um escritor como Vila-Matas situa-se no mesmo plano que um recém-chegado, ainda que de qualidades imediatamente reconhecíveis. Quanto ao tema desse prólogo, não é imprescindível escrever uma História Geral do Vazio, seria talvez um catálogo de banalidades. Escrevemo-la nós todos os dias e nunca nos aborrecemos. É aliás com um prazer desinteressado que o fazemos. Para mim é importante rodear-me de alguma humanidade. Cada um vive conforme a sua condição. Não me parece que exista uma pauta a seguir. Tanto melhor se as coisas correm bem. Três vezes por dia um tratador lança-me nacos de carne. Às vezes estou a dormir e só dou conta mais tarde, quando a carne já está carregada de moscas. Leio durante grande parte da noite. Não perguntes como arranjo os livros ou onde aprendi a ler. Pergunta-te que conclusões ficam das leituras que faço. A maioria das vezes é puro entretenimento, para descansar das crianças aos gritos ou do êxtase do público quando atravesso o arco em chamas. Outras vezes ensaio alguma rebeldia. Sei que estou preso. São momentos em que o meu rugido é mais selvagem. Mas tudo o que fazes é um balão. Que se enche e esvazia continuamente. Não me sinto privado de liberdade. Nasci no circo. Isto pode soar-te ridículo.
Não adormeças. Nessa posição podes cair e bater com a cabeça. Ficar amnésico. Esqueceres quem és. Parar de rever-te na vida actual ou deixar de ser guarda-nocturno. Não sei se para ti seria um desastre perderes a memória. Gosto de organizar pequenos inventários de ausências. No entanto, mesmo depois de notar essas faltas, não penso agir em conformidade com outra decisão que não seja continuar aqui. Não dou excessiva importância ao palco que piso. Fazer parte do espectáculo torna-me, afinal, invisível. Logo que saio do túnel e dou uma volta pela arena o público julga que assiste a alguma mostra de raça e surpreende-se com o meu porte, que encontra nobre, mas na realidade estou apenas a esticar as pernas; tolhidas por passar o dia recostado contra o tapume da jaula.
A voz calou-se e não olhei para trás. Esperei para ver o que acontecia. Não aconteceu nada e levantei-me com dores nas articulações. Na entrada, a lona, às riscas vermelhas e brancas, abria-se num triângulo. A manhã despontava e a luz provocou-me tonturas. Baixei os olhos e vi um monte de latas de cerveja por cima da serradura. Levava várias horas a beber. Enquanto olhava para as bancadas, que mais tarde seriam ocupadas por pessoas com expectativas de diversão, urinei para cima das latas, a serradura empapava o líquido, e nesse momento também não percebi qual a necessidade de traçar uma teoria geral do vazio.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Contra o enfático
Dormi
todo o dia e acordei às oito da noite. Cozinhei dois bifes de
vaca com molho de cerveja. Comi uma tangerina no terraço. Tinha
vontade de mandar as cascas por cima do muro que delimitava o
terraço seguinte. Mas o acto de enviar cada uma das cascas por cima
do muro só podia ser visto como má vizinhança, pouca educação,
sempre alguma espécie de grosseria. Nunca ninguém pensaria no que
na realidade significava: um gesto
contra o enfático.
Fumei
um cigarro à porta do terraço, que dava para cozinha, e
perguntei-me pelos corvos desaparecidos. Habitualmente grasnavam
desde os ramos do pinheiro. De novo, pensei em mandar a beata apagada
para o terraço dos vizinhos (que não eram mesmo nada simpáticos).
Fiz aquela pergunta elementar: se gostava que me fizessem o mesmo,
concluí que se alguém o fizesse, se encontrasse cascas de tangerina
ou pontas de cigarro no meu terraço, seria por falta de urbanidade;
não existe muita gente com capacidade para discursos mínimos,
epígrafes contra
o enfático e o solene. Acabei por considerar que a linha que
separa a falta de educação do discurso mínimo mais desistente é
realmente insignificante. Pensei nas feministas que mostram as tetas
por dá cá aquela palha.
Mas
depois já nada disso teve importância. O que me ocupou foi tomar
duche, escolher a roupa, vestir-me, perfumar-me, recolher as chaves
do carro, o isqueiro, a carteira e o telemóvel. Saí e fui directo a
um bar com uma carta onde anunciavam, pareceu-me mesmo, perto de mil
cocktails. Pedi dois Tom Collins e bebi logo um. Depois fiquei
sentado ao balcão a ler o El Cultural, revista que sai à
sexta-feira com o El Mundo, onde se publicavam dois artigos sobre
um livro do Roberto Bolaño. Uma noite ela leu em voz alta
um conto incluído no Llamadas telefónicas ou no Putas
asesinas, não me lembro ao certo, e finalmente decidiu que não
gostava da escrita, um mero encadear leviano de frases
que esbarrava na superfície das coisas. Vidas utilitárias
ainda que de certa forma corajosas. Um desfilar de situações
protagonizadas por personagens sem medo, é certo, mas também sem
rumo certo (e outra vez o discurso contra o enfático, que questiona
a certeza). Uma imaginação colossal e um movimento
constante. Figuras que coincidem num mesmo ponto e logo divergem sem
encontrarem ocasião para chegar a uma conclusão. Ela preferia Guy
de Maupassant ou Katherine Mansfield. E não deixava de ter razão.
Mas eu retiro sempre alguma coisa de positivo de gente que joga tudo
de uma vez. Sobretudo agora aqui onde estou, consciente do sem
sentido, não me posso dar ao luxo de ignorar um autor como Bolaño.
O livro chamava-se Los sinsabores del
verdadero policía. Um
dos críticos, depois de deixar claras as qualidades incomuns, a
ousadia e a liberdade dos escritos de Bolaño,
sublinhava
que não se tratava, como pretendia a edição, de um romance ou de
um romance inacabado. Tratava-se de um conjunto de materiais em
distinto estado de evolução recolhidos simplesmente para que nada
de Bolaño ficasse por publicar. O crítico não gostava de armários
perfeitos com as gavetas etiquetadas. Bolaño escrevia muitas vezes a
partir do meio e interrompia-se quando entrevia uma ideia em
movimento num caminho paralelo. Como os miúdos que se
empoleiravam nos eléctricos em marcha para não pagar bilhete ou
para se divertirem sem mais. É preciso muita destreza, anular a
diferença de velocidades com risco de queda. Aproveitar a boleia,
acidental. Manter a vida fragmentada no plano do objecto acabado.
Quando
abandonei aquele que tinha sido o
nosso lar
durante cinco anos obriguei-me a descer as escadas a correr. Saltei
alguns degraus de dois em dois. O impacto da porta a fechar-se atrás
de mim pareceu prevenir-me de que a partir daquele momento já não
era bem-vindo. As ruas estavam cobertas por um manto de folhas. Não
havia vento e as folhas compunham uma camada uniforme. Já tinha as
malas todas no carro e acelerei. Pensei que a única coisa que
poderia afastar o eco das últimas palavras seria aquele tipo de
trabalho físico, continuado e repetitivo, que lentamente vai
absorvendo as forças e sugando a energia, chegando-se ao final do
dia sem conseguir dar atenção a mais nada que não seja
proporcionar descanso ao corpo. Desejei estar incumbido da limpeza de
três ou quatro quarteirões. Varrer os passeios, limpar os canteiros
das flores, juntar vários montes de folhas, distribuí-los a cada 30
metros e depois recolhê-los para uma carrinha de caixa aberta.
Materializar a inutilidade quando o motorista arrancasse de repente e
as folhas voassem. Esse era o meu estado de ânimo. Uma sensação de
inutilidade completa. Podia esforçar-me que no final o resultado era
o mesmo: como se não tivesse agido, como se estivesse parado todo o
tempo.
As
declarações eloquentes, que procuram ter um efeito, influência no
leitor ou no ouvinte, nunca me deixo prender por elas. Não leio
jornais. O tempo passou e as histórias de amor acabaram. Deixei de
ter essa tábua de salvação. Não foi uma decisão consciente mas
todo o meu comportamento ulterior derivava dessa recusa. Faz todo o
sentido, se páras para pensar em determinadas experiências que te
afectaram e não podes ultrapasar.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Nova Scotia Robots
Estou dez
horas na fábrica. Os turnos foram extintos e o horário laboral
passou a ser fixo. Para não perdermos o emprego, os sindicatos
assinaram a proposta da direcção que incluía uma revisão das
jornadas de trabalho. Uma situação que se pretende temporária.
Chego antes, regresso sempre depois da hora. As dez horas não são
passadas a trabalhar, provavelmente nem um quarto do tempo. Mas temos
que manter-nos disponíveis para o caso dos clientes enviarem
pedidos. Muitas vezes são os fornecedores que demoram as entregas de
material. É desmotivador quando fazemos tudo o que é esperado e são
os outros que falham.
Volto a casa destroçado. Não pelo trabalho realizado, que está reduzido ao mínimo, mas pelo facto das horas serem passadas em contínua espera, na cantina, à porta do edifício principal, nos corredores, nas oficinas, e não usamos máscara porque o pó está assente e não anda no ar. Mas respiramos o mesmo ar viciado. Em conversas de circunstância. Sempre sem novidade. Um tempo contrafeito.
Chego a casa vazio. A postura em que me deixo cair na cadeira é a postura em que fico até ao dia seguinte, como um molde de barro que alguém abandonou porque já não encontrou serventia, a manipulação condenada desde o princípio, fico sentado e durante horas nem considero levantar-me para fechar a janela. Fico ali sentado, encolhido, a gelar e a imaginar um dia sem tempos de espera. Um dia que não seja reactivo. Acordo noite dentro e aguardo que o sol nasça. Desejo que seja finalmente esse o dia do regresso à antiga rotina. Um dia inteiro na linha de montagem, com as pausas para limpar o suor, um dia sem incertezas, novamente uma máquina oleada que junta peças vezes sem conta; não perde a concentração e volta aos objectivos bem traçados.
Volto a casa destroçado. Não pelo trabalho realizado, que está reduzido ao mínimo, mas pelo facto das horas serem passadas em contínua espera, na cantina, à porta do edifício principal, nos corredores, nas oficinas, e não usamos máscara porque o pó está assente e não anda no ar. Mas respiramos o mesmo ar viciado. Em conversas de circunstância. Sempre sem novidade. Um tempo contrafeito.
Chego a casa vazio. A postura em que me deixo cair na cadeira é a postura em que fico até ao dia seguinte, como um molde de barro que alguém abandonou porque já não encontrou serventia, a manipulação condenada desde o princípio, fico sentado e durante horas nem considero levantar-me para fechar a janela. Fico ali sentado, encolhido, a gelar e a imaginar um dia sem tempos de espera. Um dia que não seja reactivo. Acordo noite dentro e aguardo que o sol nasça. Desejo que seja finalmente esse o dia do regresso à antiga rotina. Um dia inteiro na linha de montagem, com as pausas para limpar o suor, um dia sem incertezas, novamente uma máquina oleada que junta peças vezes sem conta; não perde a concentração e volta aos objectivos bem traçados.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Parte da beleza
Na
altura, e como não soa bem dizer isto, julgava que fragilidade é
que era sensual, se não fosse uma incomodidade com as coisas, com o
mundo. Se não trouxesse atrelada a vontade de mudar alguma coisa. Se
apenas significasse um dedo em constantes caracóis no cabelo. Ela
dançava devagar, sem companhia, no meio da pista. A Salita
de Juegos, por
causa dela,
não era um bar corriqueiro. Nunca me atrevi a fazer conversa, no
último momento desistia chegando à conclusão que me daria mil
voltas. Até que a deixei de encontrar. Não sei definir com precisão
a importância que teve – uma pessoa com quem nunca falei - mas ao
dizer a verdade
apenas estou a enganar o mundo com uma sequência de verdades
palmatórias eventualmente bem apresentadas e racionais. Vontade de
que um fim-de-semana seja só um fim-de-semana. Com a simplicidade e
o acesso directo estaria a oferecer uma parte
da beleza,
que é o que unicamente representa a verdade. Todas
as sextas-feiras esperava em vão. Voltava a casa e lia um dos contos
de Raymond
Carver
até adormecer. E ela regressava e continuava a dançar devagar, sem
companhia, no tecto do meu quarto.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
domingo, 26 de janeiro de 2014
Terra fria
Acordei com o mergulho de alguém na piscina. A minha mulher dormia profundamente, a boca ligeiramente aberta. Quando acordo antes de hora proveitosa sei que é inútil tentar voltar a adormecer. Fui até à varanda e em baixo, numa espreguiçadeira, com algumas garrafas vazias à volta, estava um casal jovem. A rapariga olhava para a piscina e o rapaz enxugava-lhe as costas com uma toalha, cruzou os braços; encolheu-se, talvez o mergulho madrugador tivesse tido um bom efeito. O rapaz abraçou-a. Deviam ser sete da manhã.
Estava num empreendimento turístico no Sul. Um amigo e colega de trabalho acabava de se casar. Ao sair do quarto cruzei-me com o casal da piscina. Estavam em fatos de banho e deixaram pegadas na alcatifa das escadas. A alcatifa do hotel parecia existir para que os ingleses se sentissem em casa. Bastante cómodo quando se saía da piscina e se subia descalço para o quarto. A sala onde decorreu o banquete continuava como a havia deixado. Sentei-me na mesa onde horas tinha estado todo o dia a comer. Oito cadeiras à volta da mesa, uma estava caída. A toalha manchada com todo o tipo de cores, talvez faltasse o azul, o azul gélido quase transparente. O banquete tinha decorrido com animação e sem uma quantidade exagerada de momentos aborrecidos. O pior dos casamentos são os vídeos biográficos, a maioria centrados em abundantes poses para a fotografia. Ouvi ruídos atrás da porta de serviço, em breve os empregados começariam as tarefas de limpeza. Na mesa que nos destinaram ficaram outros três casais, o Rodrigo, o Josep e a Cristina, amigos que tenho em comum com o noivo, acompanhados pelos seus companheiros de relação (mais ou menos comprometidos). Conhecíamo-nos há algum tempo mas, devido à pouca estabilidade laboral, todos trabalhávamos já em empresas diferentes. Alguém recordou Javier. Chegámos à conclusão de que havíamos perdido o contacto com ele. Não tínhamos a certeza de onde se encontrava ou de qual a sua ocupação. Recordámos episódios. Um jantar de natal que acabou na cave de um bar em Recoletos. Recordámos mais episódios e a conversa adquiriu um certo tom de reserva com frases ditas entre silêncios.
Lembrei-me da última conversa telefónica que mantive com Javier e acabei a enumerar tantas coisas que lhe podia ter dito. Várias vezes estive prestes a abandonar algo que me era favorável. Seguir uma pequena liberdade interior que me parecia encher o peito e confiscar toda a representação aparente de vida, e isto só com a minha voz. Apoderava-se do meu ânimo uma estranha sensação de expectativa, ainda que o meu comportamento, cada vez mais titubeante, actuasse naquele mesmo rumo coerente com a semana, o mês, o ano passado. Ampliava certos bancos nebulosos e sopesava se a melhor saída não seria contar comigo mesmo, sozinho. Obscurecia de propósito uma frase, um momento, e pensava na possibilidade de uma ilha que me fizesse distante e impossível de atingir. Não é necessário muito para viver com dignidade. Tentava avaliar a minha dose real de pessimismo e nunca chegava a grandes conclusões. Procurava sobretudo não a alimentar. Afastar momentos de fantasia que me lançavam pontes para onde, convinha, me acabaria por encontrar isolado. Encarregar-me da minha vida tinha um significado de prudência, certa frieza de testa para em cada momento posicionar-me onde nunca me daria vergonha estar e poder dizê-lo sem fazer perigar o agradável retorno a casa.
Voltei aos segundos em que o rapaz enxugava as costas da rapariga. A rapariga aproximando a boca do ombro. O rapaz seduzido pelo movimento. Sabia o que era o amor, depois de tudo. Subi as escadas alcatifadas e notei como os degraus já estavam secos. Despi-me. Maldisse a minha falta de habilidade porque a minha mulher entretanto acordara com o barulho da fechadura. Perguntou-me as horas e respondi-lhe: muito cedo para o que quer que seja; deitei-me de novo, embalando-nos com o movimento cadenciado do meu corpo, provavelmente muito semelhante às repetições compulsivas de quem procura afastar uma ansiedade difusa, não consegui voltar a adormecer mas a minha mulher já não me respondeu quando lhe apertei a mão.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
Estava num empreendimento turístico no Sul. Um amigo e colega de trabalho acabava de se casar. Ao sair do quarto cruzei-me com o casal da piscina. Estavam em fatos de banho e deixaram pegadas na alcatifa das escadas. A alcatifa do hotel parecia existir para que os ingleses se sentissem em casa. Bastante cómodo quando se saía da piscina e se subia descalço para o quarto. A sala onde decorreu o banquete continuava como a havia deixado. Sentei-me na mesa onde horas tinha estado todo o dia a comer. Oito cadeiras à volta da mesa, uma estava caída. A toalha manchada com todo o tipo de cores, talvez faltasse o azul, o azul gélido quase transparente. O banquete tinha decorrido com animação e sem uma quantidade exagerada de momentos aborrecidos. O pior dos casamentos são os vídeos biográficos, a maioria centrados em abundantes poses para a fotografia. Ouvi ruídos atrás da porta de serviço, em breve os empregados começariam as tarefas de limpeza. Na mesa que nos destinaram ficaram outros três casais, o Rodrigo, o Josep e a Cristina, amigos que tenho em comum com o noivo, acompanhados pelos seus companheiros de relação (mais ou menos comprometidos). Conhecíamo-nos há algum tempo mas, devido à pouca estabilidade laboral, todos trabalhávamos já em empresas diferentes. Alguém recordou Javier. Chegámos à conclusão de que havíamos perdido o contacto com ele. Não tínhamos a certeza de onde se encontrava ou de qual a sua ocupação. Recordámos episódios. Um jantar de natal que acabou na cave de um bar em Recoletos. Recordámos mais episódios e a conversa adquiriu um certo tom de reserva com frases ditas entre silêncios.
Lembrei-me da última conversa telefónica que mantive com Javier e acabei a enumerar tantas coisas que lhe podia ter dito. Várias vezes estive prestes a abandonar algo que me era favorável. Seguir uma pequena liberdade interior que me parecia encher o peito e confiscar toda a representação aparente de vida, e isto só com a minha voz. Apoderava-se do meu ânimo uma estranha sensação de expectativa, ainda que o meu comportamento, cada vez mais titubeante, actuasse naquele mesmo rumo coerente com a semana, o mês, o ano passado. Ampliava certos bancos nebulosos e sopesava se a melhor saída não seria contar comigo mesmo, sozinho. Obscurecia de propósito uma frase, um momento, e pensava na possibilidade de uma ilha que me fizesse distante e impossível de atingir. Não é necessário muito para viver com dignidade. Tentava avaliar a minha dose real de pessimismo e nunca chegava a grandes conclusões. Procurava sobretudo não a alimentar. Afastar momentos de fantasia que me lançavam pontes para onde, convinha, me acabaria por encontrar isolado. Encarregar-me da minha vida tinha um significado de prudência, certa frieza de testa para em cada momento posicionar-me onde nunca me daria vergonha estar e poder dizê-lo sem fazer perigar o agradável retorno a casa.
Voltei aos segundos em que o rapaz enxugava as costas da rapariga. A rapariga aproximando a boca do ombro. O rapaz seduzido pelo movimento. Sabia o que era o amor, depois de tudo. Subi as escadas alcatifadas e notei como os degraus já estavam secos. Despi-me. Maldisse a minha falta de habilidade porque a minha mulher entretanto acordara com o barulho da fechadura. Perguntou-me as horas e respondi-lhe: muito cedo para o que quer que seja; deitei-me de novo, embalando-nos com o movimento cadenciado do meu corpo, provavelmente muito semelhante às repetições compulsivas de quem procura afastar uma ansiedade difusa, não consegui voltar a adormecer mas a minha mulher já não me respondeu quando lhe apertei a mão.
(Texto originalmente publicado na Enfermaria 6.)
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